EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX
Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais, e milhares
de outras pequenas,
e igualmente bestiais
Aqui jaz um século
onde se acreditou,
que estar à esquerda
ou à direita,
eram questões centrais
Aqui jaz um século,
que quase se esvaiu
na nuvem atómica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas,
com sua homeopática
atitude
–nux-vómica.
Aqui jaz um século
que um muro dividiu.
Um século de betão
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas,
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado,
que o vento levou.
Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialéctico
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideologias safenas;
século tecnicolor,
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso e esquizo,
que não pode computar os
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
Aqui jaz um século
que se chamou moderno,
e olhando presunçoso,
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez alarde
e, no entanto
– já vai tarde.
Imagem destacada: o escritor Affonso Romano de Sant’Anna / Foto: Clarissa Barçante