Reflexões acerca da mudança do nome ‘Nina Rodrigues’ do hospital psiquiátrico
Luiz Eduardo Neves dos Santos, geógrafo, ativista e professor do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas da UFMA, campus Pinheiro.
O passado, no Brasil, pode ser compreendido como aquilo que aparece agora diante dos nossos olhos e não somente um tempo que ficou para trás. E aparece de muitas maneiras, o nosso passado escravocrata, por exemplo, se manifesta através do racismo cotidiano. Os fatos incômodos e inaceitáveis vão desde a violência operada pelo que se convencionou chamar de ‘trabalho escravo contemporâneo’ em fazendas e latifúndios Brasil afora, passando pelo encarceramento em massa, até o genocídio de grupos negros na periferia das grandes cidades do país.
O racismo é uma forma concreta de exercício de poder, ao mesmo tempo que é uma ideologia eivada de subjetividades, crenças e preceitos que alega um modo de superioridade de determinados grupos sociais sobre outros, por identificação de diferenças raciais, ou como diz Sueli Carneiro, “o racismo opera como um disciplinador, ordenador e estruturador das relações sociais e raciais nas quais se amalgamam as contradições de classe e raça”.
Mas por que começo tratando do racismo para falar em uma proposta de mudança do nome ‘Nina Rodrigues’ do Hospital Psiquiátrico em São Luís? Justamente porque o médico maranhense e seu trabalho estão intrinsecamente ligados a questões que são caras à luta antirracista no Brasil.
O batismo de lugares, logradouros e prédios públicos em homenagem a personalidades, além do erguimento de monumentos, estátuas e bustos com a mesma finalidade possui uma longa tradição na História do Brasil. Tais nomeações possuem uma característica em comum, a imensa frequência de topônimos ligados à branquitude, ao poder político, econômico e intelectual e o consequente apagamento de nomes ligados à cultura africana e afrobrasileira.
Deste modo, as nomeações não são obra do acaso, elas são tentativas deliberadas de eternização de determinados sujeitos no imaginário popular em virtude de suas possíveis contribuições na área em que atuam ou atuaram. Isto me remete ao historiador francês Pierre Nora, que forjou o termo “lugares de memória”, em que símbolos, nomes e monumentos são tantas vezes impostos via poder político à sociedade para se criar arquivos expostos, a fim de lembrar datas e ciclos, uma espécie de vigilância comemorativa, isto é, na ausência de memórias espontâneas, se produzem memórias e suas narrativas.
Vejamos o caso de São Luís, incluindo o nome de Nina Rodrigues. Certa vez participei de uma pesquisa sobre a nomeação dos logradouros do Centro Antigo, área do Anel Viário, ali foram contabilizados 345 logradouros entre ruas, praças, becos, travessas e largos. Apareceram na pesquisa em torno de 900 nomes, isto porque é bastante comum que tais logradouros possuam dois ou mais topônimos, muitos empurrados goela abaixo à população através de leis ou decretos municipais, mas nem sempre aceitos e proferidos pelos grupos que vivenciam o território.
Nina Rodrigues é um dos nomes que aparecem na pesquisa, quando faleceu em 1906 foi transformado em nome de rua, mas qual? A Rua do Sol, que permanece como referência para a população da cidade, já que o nome do médico não “pegou”, bem como tantos outros, a exemplo da Praça Sotero dos Reis, mais conhecida como Praça da Alegria ou a Avenida Osvaldo Cruz, muito mais conhecida como Rua Grande.
Diante do exposto, há por trás do batismo de prédios e logradouros públicos uma disputa pela memória, disputa esta que não é apenas simbólica, mas sobretudo política, uma disputa em que, amiúde, grupos dominantes impõem seus discursos, visões e valores sobre uma dada realidade. Segundo Cida Bento a memória pode tanto atribuir valores à experiência passada ao reforçar vínculos de comunidade, como também pode ser revisão narrativa sobre um certo passado ‘vitorioso’, revelando atos reprováveis e/ou desumanosque a elite quer apagar ou esquecer.
Voltando a nossa pergunta do início do texto, se faz necessário argumentar que a proposta de retirada do nome “Nina Rodrigues” do Hospital psiquiátrico, situado na Avenida Getúlio Vargas no Monte Castelo é bem vinda na perspectiva de que a manutenção desta nomeação é uma forma de celebrar o que não devemos celebrar, qual seja a visão estigmatizada dos negros, vistos como inferiores, e a própria ideia de mestiçagem, encarada como um problema biológico e degenerativo. E isto não quer dizer que vultos como o de Nina Rodrigues devam desaparecer, pelo contrário, seus trabalhos são públicos, de fácil acesso, há robustos estudos sobre sua obra e com ela podemos aprender muitas coisas.
A democracia brasileira, com todas as suas contradições, necessita celebrar a diversidade e combater o racismo, a disputa pela memória enquanto luta desigual deve ser substituída por reparação e justiça a grupos que historicamente foram apagados e/ou silenciados. A mudança de nome do hospital psiquiátrico pode parecer para alguns algo que não tem impacto social, mas é sim um ato simbólico relevante. Mais ainda, mesmo que o nome mude, e ao contrário do que possa parecer, é uma forma de não ESQUECER, de nos mantermos vivos, ativos e sãos sobre uma temática árdua, porque como nos ensinou o escritor uruguaio Eduardo Galeano em seu Livro dos Abraços, “não existe tapete que possa ocultar a sujeira da memória”.