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Conselhos Tutelares: o que dizem as urnas

Fonte: Outras Palavras

Um olhar sobre as eleições de 1º/10. O papel das candidaturas democráticas. A importância da articulação nacional e os erros táticos. A força das igrejas. E a falta de atuação permanente em órgãos vitais no território e na disputa de valores

Por Miriam Krenzinger e Luiz Eduardo Soares para Outras Palavras

Qualquer avaliação definitiva seria prematura, ainda faltam informações cruciais, mas já é possível esboçar algumas considerações sobre a eleição para os Conselhos Tutelares, que se realizou em todo o país no dia 1 de outubro. Os primeiros dados indicam a supremacia de candidaturas comprometidas com pautas conservadoras -para dizer o mínimo-, possivelmente por ampla maioria. Entretanto, notícias provenientes de diversas regiões apontam crescimento da participação e aumento do volume de votos dirigidos a representantes do que poderíamos denominar campo democrático progressista. Em síntese: avanço houve, embora insuficiente para garantir atendimento efetivo a crianças e adolescentes, de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo ECA.

Diante de nós, dispõe-se uma agenda de pesquisa urgente, quantitativa e qualitativa, que combine levantamento de dados empíricos e surveys com etnografias e observacão participante. Precisamos saber: quem são os novos conselheiros, segundo gênero, etnia, faixa etária, extração profissional, vínculos associativos e religiosos, identificação político-ideológica e conhecimento tanto de suas atribuições quanto das referências legais que as determinam. Quais foram seus principais competidores e em que termos se deu a disputa eleitoral. Qual era o quadro precedente e que instituições e entidades locais atuaram ao longo do processo. É imprescindível também saber quais foram as normas que orientaram as eleições em cada município, desde as exigências formais a que as candidaturas tiveram de atender até o tipo de voto adotado: para o conjunto das cinco vagas de cada Conselho ou para candidatos individuais. Essas informações serão relevantes para o debate inadiável a respeito da conveniência ou não de uniformização nacional dos procedimentos e do estabelecimento de condições para candidaturas.

Evidentemente, o tipo de voto determina alterações nas táticas eleitorais a serem adotadas, assim como as exigências formais modificam os métodos de recrutamento de candidatos e candidatas. Outro ponto decisivo é a formação tanto de candidatos, quanto de conselheiros já eleitos. Quem de boa fé duvidaria de sua importância? Mas com quais recursos, por meio de que arranjo institucional -entre os entes federados, a União, as instituições locais de ensino, as extensões universitárias- e a partir de qual matriz curricular?

Comecemos pelas boas notícias: (1) Aumentou a participação da sociedade, no debate eleitoral e no comparecimento às urnas. Segundo o MDH, a participação na escolha de conselheiros tutelares cresceu mais de 25%. Um milhão e 600 mil pessoas votaram nas eleições de domingo, dia 1º de outubro de 2023, 400 mil a mais do que no pleito anterior, realizado em 2019; (2) O ministério dos Direitos Humanos -o próprio ministro Silvio Almeida e seus colaboradores- empenhou-se, nos limites de suas possibilidades, para qualificar o processo e divulgar a importância dos Conselhos Tutelares; (3) A mídia independente dedicou-se ao esforço de comunicação, reduzindo a indiferença e o desconhecimento a respeito da matéria; (4) A Defensoria Pública do Rio de Janeiro conseguiu garantir transporte gratuito para os eleitores em boa parte dos municípios fluminenses, a exemplo do que fizeram algumas prefeituras, em vários estados; (5) Iniciativas originais revelaram-se promissoras, entre as quais a plataforma virtual “A Eleição do Ano”, mantida por várias entidades da sociedade civil, na qual candidatos que se identificam com o ECA e princípios democráticos puderam assumir compromissos públicos; (6) Foi criado o Observatório dos Conselhos, na Universidade Federal do Rio de Janeito, destinado a pesquisas e formação, na trilha da pioneira, já tradicional e sempre fundamental Escola dos Conselhos, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Quanto à plataforma “A Eleição do Ano”, provavelmente a mais impactante das iniciativas, inscreveram-se, ao longo de um mês, em todo o país, segundo seus próprios boletins informativos, identificando-se com os valores que ela representa, 2.561 candidaturas, período em que houve 4.902.463 acessos. São Paulo foi a cidade mais engajada na campanha, quanto a eleitores, candidatos e acessos (38% do total). No que se refere a candidaturas inscritas na plataforma: 1.6% (equivalente a 41 candidaturas) foram de pessoas trans; 66.3%, mulheres; 35.9% foram de pessoas pardas; e 69.4% eram novas candidaturas (ou seja, não estavam concorrendo a reeleição).

No município do Rio, dos 106 candidatos e candidatas que se inscreveram na plataforma “A Eleição do Ano”, 26 foram eleitos. Somando-se a estes os eleitos que constavam de outras listas de candidaturas progressistas, podemos estimar que o campo progressista carioca elegeu, no mínimo, 35% dos conselheiros. Em quinze dos dezenove Conselhos existentes no município do Rio de Janeiro, o campo progressista ocupará ao menos uma cadeira. Contudo, destaque-se que em quatro regiões, aparentemente, numa primeira abordagem (esperamos ser surpreendidos por indicação em contrário), o campo progressista não contará com nenhum representante: Bangu, Campo Grande, Inhaúma e Realengo. Relatos e pesquisas descrevem essas áreas -nas quais Lula foi derrotado por Bolsonaro- como caracterizadas por forte atuação de milícias, políticos de direita e religiosos conservadores.

Um tópico a lamentar, mas que sinaliza perspectivas futuras positivas e nos ajuda a pensar, autocriticamente, e a rever táticas e estratégias: algumas votações expressivas alcançadas pelo campo progressista denotam forte concentração em certas candidaturas e, exatamente por isso (dando a uma candidata muito mais do que teria sido necessário para se eleger e deixando sem votos outras candidaturas do mesmo campo, na mesma área), demonstram, por um lado, seu notável potencial de conquistar apoio na sociedade, mas, por outro, a precariedade organizativa, o predomínio do voluntarismo e do personalismo, dificuldades de comunicação e deficiências no conhecimento e no contato com as realidades mais que locais, capilares, isto é, com o microcosmo político. Que atores sociais e micro-políticos souberam equilibrar as correntes locais de votação, distribuindo apoios entre diferentes candidaturas de modo a ocupar o maior número de vagas nos Conselhos? Aparentemente, não foram os partidos, cujo enraizamento comunitário não se compara àquele obtido por igrejas. Não subestimemos as agências religiosas, que compartilham as experiências cotidianas da coletividade, conquistam a confiança e convivem com eleitores nos cultos semanais -às vezes, os encontros ocorrem com mais frequência. Que melhor oportunidade para comunicar às populações locais o valor de determinadas candidaturas e a necessidade da participação eleitoral do que essas reuniões ritualizadas, face a face, sob os cuidados severos da esfera sagrada, ante a vigilância atenta da própria divindade?

Lembremo-nos ainda do papel das redes e das rádios populares: no Rio de Janeiro, por exemplo, foi notória a persistência da rádio Melodia na divulgação de candidatos associados ao mundo evangélico.

Observe-se que o eleitorado progressista, tudo indica, não se deu conta de que, ao contrário do que acontece nas eleições para deputados e vereadores, os votos não são redistribuídos no âmbito das frentes partidárias, de forma a que se aproveitem os restos, desde que alcançado o coeficiente eleitoral. Na eleição de conselheiros, a regra segue, aproximadamente, a lógica majoritária, uninominal ou distrital simples: serão eleitos os cinco mais votados. Um campo ideológico-político pode ser majoritário e, mesmo assim, por conta da dispersão, ficar de fora do colegiado. Ou, com maior probabilidade, pode consagrar um candidato com votação desproporcionalmente elevada, e entregar aos adversários as demais quatro vagas do Conselho.

Há muito a caminhar, e não só para proporcionar a crianças e adolescentes a garantia de que conselheiros estarão sempre e rigorosamente a seu lado, ao lado de seus direitos, o que dependerá da vitória de candidaturas efetivamente comprometidas com o ECA e os Direitos Humanos, e não com preconceitos de origem religiosa ou ideológica. Há um longo caminho pela frente porque, segundo o CONANDA, o índice de cobertura legalmente exigido (um Conselho por 100 mil habitantes) está longe de ser respeitado, no conjunto do país: enquanto em Porto Alegre e Florianópolis o índice chega a 80% do previsto, em Curitiba, Recife e Belém alcança 60% do determinado, em São Paulo apenas 50%, em Goiânia, 40%, e no Rio de Janeiro não passa de 30%. Além disso, na ausência de um piso nacional, os conselheiros nem sempre são remunerados de acordo com a relevância de suas funções: eles e elas recebem, no Distrito Federal, R$ 6.000,00, em São Paulo, R$ 4.000,00, e em Aracajú, R$ 1.900,00.

Em alguma medida, podemos afirmar que, ao menos em território fluminense, o processo eleitoral não está inteiramente encerrado, pois o Ministério Público informou que serão instaurados procedimentos administrativos para apuração de todas as denúncias recebidas no estado. Segundo a nota oficial, serão tomados depoimentos de testemunhas e analisadas as provas existentes, que poderão resultar na impugnação de candidaturas por via administrativa ou judicial. Diz ainda a nota: caso se comprovem irregularidades cometidas durante a campanha eleitoral, o candidato pode perder o cargo, mesmo após ser empossado.

A prudência recomenda, portanto, que mantenhamos o engajamento e acompanhemos os procedimentos até o fim.

Moral da história: houve avanços, mas estamos muito longe do que seria minimamente razoável, em se considerando a gravidade das questões em jogo. O que está em jogo? A vida de milhões de crianças e adolescentes e o futuro da democracia no Brasil. A hegemonia conservadora, deslizando celeremente para as trevas do fascismo, constrói-se no dia a dia da experiência popular. O vento forte de conjunturas eleitorais balança ramos frágeis, mas dificilmente abala as raízes plantadas no fundo da alma humana.

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