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Uns e outros

Eloy Melonio

Em sua admirável simplicidade, Chico Xavier diz coisas que nos comovem. E foi com essa concepção que recebi um post de um amigo, listando coisas supérfluas e coisas necessárias. Ou seja, sábias afirmações em que o médium brasileiro revela ― entre outras coisas ― que “uns querem ter olhos claros; outros, apenas enxergar”.

Ao meu amigo, dei uma resposta espirituosa: pois é, o nosso mundo é feito de “uns e outros”.

Ainda bem! Já imaginou “se todos fossem iguais a você”, como na canção do Tom e do Vinicius? Num atual contexto de valorização da diversidade, isso seria um pesadelo, zoeira total.

Imagine-se, então, indo à feira num domingo pela manhã para comer um caldo de ovos na banca da D. Albertina. Lá, depara-se com uma fila de matar. E, aí, “volta pra casa abatido(a), desencantado(a) da vida”. Parece que, nesse dia, tanto “uns” quanto “outros” resolveram comer o caldo de ovos mais famoso do pedaço. E olha que não era Black Friday!

No encontro da Ipiranga com a São João, um dos mais famosos logradouros em São Paulo, Caetano Veloso sentiu o coração acelerado naquele mundão de concreto e veículos automotivos. Ouvindo a canção, imagino uma cena com muita gente na rua: uns, indo; outros, vindo. E, na veia musical do baiano arretado, “o avesso do avesso do avesso”.

Aproveitando uma dessas belas manhãs de Sol, minha esposa me mostrou a novidade do nosso terraço: um lírio laranja que acabara de desabrochar. “Coisa mais linda!”, diriam, em uníssono, os amantes da floricultura. Fui ao Google para ver mais imagens dessa delicada flor, decantada por Honoré de Balzac em “O Lírio do Vale”. E encontrei uma rica variedade de tipos, formas e cores. Sou leigo nessa arte, mas me encantei com o que vi. E me lembrei de um trecho do livro do escritor francês: “Era ela o lírio daquele vale, enchendo-o com o perfume de suas virtudes” ([adaptado de] O LÍRIO DO VALE, L&PM).

Na ficção, os olhos de Félix, a personagem do romance, por razões amorosas, brilham diante de seu lírio, mas o vale certamente abriga outras espécies igualmente belas, admiradas por muitas pessoas.

Uns e outros estão por aí, cruzando avenidas, caminhando contra o vento. Uns gostam de samba, outros são ruins da cabeça. Uns são diferentes; outros, iguaizinhos aos seus pais. E ― parafraseando Balzac ― “enchendo a vida com as cores e os odores de sua diversidade”.

O mundo gira, e o poeta tenta entender essa roda-viva. E se espanta ao perceber que, em si mesmo, existe dissintonia entre “um” e “outro” que habitam a sua subjetividade. Ferreira Gullar traduz-se assim: “Uma parte de mim/ é todo mundo;/ outra parte é ninguém” (Na Vertigem do Dia). Também eu me aventuro nessa introspecção: “Dentro de mim/ existe um eu que me diz/ quem eu sou/ mesmo quando penso/ que não sou quem realmente sou” (Dentro de Mim, pag. 123).

Que seria dos “outros”, se não fossem os “uns”? Ou dos “uns”, se não fossem os “outros”? Já imaginou uma cidade só de “uns”, ou um estado transbordando de “outros”.

Acredito que é na diversidade que reside a beleza de se ser humano, lírio, e Balzac. De ser “eu”, de ser “você”. Porque — em todas as épocas e lugares — “o supérfluo e o necessário”, o igual e o diferente, o certo e o errado, todos, esperam de nós uma posição. Não podemos ter um pé no Pacífico e o outro no Atlântico. E, assim, ou nos encontramos no meio de “uns” ou nos perdemos em volta de “outros”.

Compartilho, aqui, uma interessante reflexão do gaúcho Mario Quintana (1906-1994), o poeta-maravilha: “Há uns que morrem antes; outros depois. O que há de mais raro, em tal assunto, é o defunto certo na hora exata”.

Excluindo-se a morte, “Cada um de nós compõe a sua história. E cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz”. Ou seja, querendo ou não, precisamos “tocar em frente”, como nos ensinam Almir Sater e Renato Teixeira, poetas da nossa música sertaneja.

Reconhecendo o nosso lado individual e o coletivo, precisamos nos respeitar mutuamente, sabedores de nossos direitos e deveres, de nossas diferenças e de nossa responsabilidade ético-social.

No mundo real, assim como na avenida da imaginação poético-musical, cruzamos com uns e com outros. No cenário da diversidade, cruzamos e caminhamos ora com uns, ora com outros.

E, enfim, descobrimos que “uns e outros” somos todos nós.

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Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta.

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