Eloy Melonio
“Há tempo para todo propósito debaixo do céu.”
É assim que Eclesiastes ― quarto livro poético da Bíblia ― abre o capítulo 3. E diz mais: “tempo de estar calado, e tempo de falar”.
A citação serve para contextualizar o tema desta crônica. Porque é chegado o tempo do HORÁRIO ELEITORAL GRATUITO. E, com ele, a temporada do “palavreado” ― gente falando “sem moderação”. Acusações, ofensas pessoais, promessas vazias ― um emaranhado de palavras aos ouvidos incrédulos dos eleitores.
E não tem pra onde correr. Os “donos da palavra” estão por toda parte. Sorridentes, falam com todo mundo, beijam as velhinhas e as crianças, tiram selfies com os jovens. Aí o jeito é esperar o tempo passar. E, quando terminar, acho que muita gente vai gritar: Já vão tarde!
Esse “palavreado” começou em 26 de agosto, quando os candidatos cantaram triunfantes: “Ói nóis aqui traveis”.
É óbvio que não estou falando dos “Demônios da Garoa”, tradicional grupo musical de São Paulo (1943), que se popularizou com canções memoráveis, como “Trem das Onze” e “Eu sou o samba”. A atração é o“grupo dos candidatos”, mas o fundo musical bem que poderia ser a música do mais antigo conjunto do mundoem atividade (Guinness/1994):
“Se vocês pensam que nóis fumos embora / Nóis enganemos voceis / Fingimos que fumos e vortemos / Ói nóis aqui traveis”
E, assim, o tempo de que fala o livro bíblico chegou para os políticos nacionais. Para os candidatos, tempo de “falar”; para o povo, tempo de ouvir.
Nesse contexto, salvo raras exceções, o espírito de seu discurso é “falatório geral” ― algo que soa como “o sanatório geral”, na música “Vai Passar”, de Chico Buarque. E a nossa sala de estar vira palco de uma tresloucada retórica. O que importa, nessa caça ao eleitor, não é o que dizer, mas dizer, dizer, dizer.
Esse verbo ― seja qual for o tempo ou o modo, ou até mesmo com erros de português ― é a arma mais poderosa dos políticos. Entre eles, grandes comunicadores que, pela eloquência, firmam-se como líderes locais ou nacionais porque suas palavras seduzem e arrebatam multidões.
E nós não somos tão diferentes. Tem gente que ainda vota por sugestão de um amigo, pressão ou submissão. Diante dos lobos, ainda somos presa fácil. O ideal seria “estudar” as propostas para escolher os mais sérios e competentes. Afinal, eles são eleitos para exercer uma função legislativa ou executiva em nosso nome. Dia desses, um amigo me deu esta lição de cidadania: “Já tenho meus candidatos: cidadãos competentes, com propostas objetivas, que defendem nossos direitos, o bem-estar e a dignidade humana”.
Um adágio diz que “tudo o que é bom dura pouco”. Para o HORÁRIO ELEITORAL, seria melhor “ruim” em vez de “bom”. Talvez essa coisa da propaganda gratuita já tivesse ido “pros quintos (do inferno)”! Não quero ser categórico, mas esse é um desejo antigo de muita gente, que já está “pê-da-vida” com essa novela da vida real.
O pior de tudo é que não inovam. Os programas são iguais (ou piores)aos da eleição passada. Excetuando-se os “peixes grandes”, o resto é tudo igual. Em vez de informar e esclarecer, o que fazem é “nadar em águas passadas”. Um partido sai de cena, entra outro; depois, voltar o anterior, com outros candidatos. Num mesmo programa, um candidato entra e sai várias vezes. Todo mundo junto e misturado, “gatos pardos” no mesmo saco.
Dito isso, pensei numa breve simulação desse palavreado.Antes, sugiro que limpe os ouvidos para ouvir direitinho o que nossos amigos têm a dizer:
“Boa noite! Sou Ana Desconhecida. E sempre estive ao lado do povo”;
“Sou Manuel Oportuno. Não sou desses que só aparecem de quatro em quatro anos”;
“Sou Tomé, da Vila Boa Esperança. Vocês sabem que sou um homem de fé”;
“Sou Ana Alfabeta. Investir em educação é investir no futuro”.
“Sou João Pacífico. Não votem nos candidatos do time do ódio. Votem em mim pra gente acabar com eles”;
“Sou Aurélio Palavra Fácil. Chega de escolher o menos pior”;
“Sou Dalila. Concorro ao meu quarto mandato. Dê uma chance ao novo!”;
A última personagem, ansiosa por seus sete segundinhos, fala em voz mansa e pausada: “Amados, sou o irmão José Maria Verdade da Cruz. Que Deus nos abençoe!”
O pobrezinho não teve tempo de dizer “Amém!” nem “Vote em mim!”. Tomara que ― na próxima campanha ― ele fique mais atento ao relógio.
Afinal, nem sempre há “tempo pra tudo” na disputa eleitoral.
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Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta.
13 respostas em ““Ói nóis aqui traveis””
é um teatro de monstros
sim e nunca que gratuito
e é em preço medonho:
para legitimar o inimigo!
Obrigado, Felipe, por seu comentário. A verdade é que a responsabilidade é igual para candidatos e eleitores. Somos nós que lhes delegamos esse poder de criar e aprovar nossas leis.
lei aqui é doce resenha
não confio em delegar
nem no que dele venha
por isso considero votar
uma ilusória resenha
Votar ou não votar — eis a questão. Nessa paráfrase, um dilema pessoal. Fiz 70 anos em julho, não sou obrigado a votar. Mas esse direito não me tira a vontade nem a responsabilidade pessoal.
Excelente texto, Eloy. Como sempre!
não sou nisso responsável
e cristalimente irrevogável
é em vez de me cumpliciar
não fazendo o inegociável
é não me responsabilizar!
*cristalinamente, quis dizer
Bela crônica
Bela história
Gostei da crônica. Muito reflexiva!👏🏼👏🏼👏🏼
Alô meu cumpade Eloi, quem é bom já nasce feito.
Abraços.
Parabéns pela crônica, meu nobre.
uito bom texto. Realista e exuberante.