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O poder da mercadoria: Karl Marx e Carlos Drummond de Andrade

Nesses tempos de globalização e imperialismo, fiquei refletindo sobre dois textos interessantes que conectam o filósofo Karl Marx e o poeta Carlos Drummond de Andrade.

O primeiro escrito está na obra “Contribuição para a crítica da economia política”, onde Marx situa o processo de circulação das mercadorias em escala mundial.

A escrita poética, por sua vez, é uma crítica à idolatria e ao fetiche da mercadoria no processo de consumo.

Veja os escritos:

“Enquanto que o mesmo ouro que desembarca na Inglaterra sob a forma de eagles americanas [moedas de 10 dólares] se transforma em soberanos, circula três dias depois em Paris sob a forma de napoleões, encontra-se algumas semanas mais tarde em Veneza sob a forma de ducados, conservando sempre, no entanto, o mesmo valor, o proprietário de mercadorias apercebe-se de que a nacionalidade is butguinea’sstamp [não é mais que o cunho do guinéu]. Tem do mundo inteiro uma ideia sublime, a de mercado – de mercado mundial.” (MARX, 1977, p. 145)

Eu, Etiqueta

(Carlos Drummond de Andrade)

Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome… estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

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Idiocracia: um filme do futuro para pensar o presente

A convite do Programa de Educação Tutorial (PET) de Biblioteconomia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), coordenado pela professora Maria da Glória Serra Pinto de Alencar, participei do projeto “Cinedebate PET Biblio” junto com os alunos e o jornalista e filósofo Paulo Iannone, assessor de comunicação do Sindicato dos Metroviários de São Paulo.

Após assistirmos ao filme “Idiocracia”, dialogamos sobre o tema “Mídia, poder e crise social: o discurso da imbecilidade na sociedade contemporânea”.

Veja ao fim da postagem como baixar para assistir.

O filme, de 2005, é ambientado no ano de 2505, protagonizado por um militar e uma prostituta selecionados para fazer parte de um experimento militar secreto que os coloca em hibernação.

A dupla é congelada para acordar no futuro, mas o projeto caiu no esquecimento e os dois caixotes congelados ressurgem 500 anos depois, num mundo embrutecido, controlado por um ex-ator pornô e halterofilista eleito presidente.

Idolatrado pela massa entorpecida por consumismo e alienante programação dos meios de comunicação, o presidente comanda todos os tipos de aberração junto ao seu secretariado corrupto, comparsa dos poderes judiciário e legislativo transformados em aberrações, além do gigantesco aparato policial repressivo.

O presidente bélico de Idolatria

As deploráveis aparições públicas do presidente e as sessões de bizarrice no parlamento só não são piores que as cenas ocorridas em uma arena de “reabilitação”, onde as pessoas sentenciadas à morte, sem provas, são executadas em rituais de sadismo coletivo nas arquibancadas.

O filme serve de inspiração para refletir sobre os fatos reais que vivenciamos hoje no Brasil, nos Estados Unidos e mundo afora, onde cresce a onda obscurantista.

Várias cenas de “Idiocracia” já são percebidas atualmente. A negação da Ciência e do Jornalismo, dois campos de produção do conhecimento fundamentais do processo civilizatório, é sinal de uma caminhada de retrocesso à barbárie.

Quando acordam na América do futuro, o militar e a prostituta veem o caos: montanhas de lixo compõem o relevo das cidades, a língua foi trocada por gírias, as agressões físicas e verbais tomam o lugar do argumento, o ódio às mulheres e aos homossexuais é uma regra e a idolatria pelo presidente pornô está elevada à máxima potência.

O nível de obscurantismo chegou ao cúmulo de abolir o uso da água e introduzir em seu lugar um líquido verde produzido pela empresa “Brawndo”, controladora de quase tudo no planeta.

Assim, a água passou a ser considerada imprópria para beber, tomar banho e regar as plantações, sendo usada apenas nos aparelhos sanitários.

Todo o filme está pautado na reprodução das pessoas idiotas em larga escala como única forma de sobrevivência no mundo caótico.

Em meio à massa idiota, o militar acaba sendo o sujeito mais inteligente do planeta, sendo convocado pelo presidente pornô a resolver os problemas da humanidade, com um cargo no alto escalão do governo.

Seu principal desafio é convencer o país de que a água deve ser usada nas plantações…

Num mundo apocalíptico, pautado na negação da razão, onde o telejornal é um espetáculo burlesco apresentado por um casal de bombados, em que tudo se converte em mercadoria controlada por uma só empresa, as pessoas são transformadas em animais bovinos tangidos por consumo de propaganda grotesca, batata frita e pornografia. Há, no filme, um impressionante culto à masturbação….

A idiocracia tem como principais substâncias a negação do pensamento, a destruição dos preceitos civilizatórios, o desprezo pelos mínimos valores morais e a mutação da política em um bizarro espetáculo de violência e sensacionalismo.

O grande ativo da idiocracia é o indivíduo que não reflete sobre o que faz ou diz, apenas acredita nas suas convicções independentemente dos fatos e dos critérios de verdade. Ele também expressa desprezo pela dor da outra pessoa e usa sempre a violência física ou verbal no lugar da argumentação.

Expressões como “não sou coveiro”, “e daí?!” ou  “é apenas uma gripezinha” têm alguma semelhança com a ficção?

A idiocracia é o império da intolerância, traduzida na impossibilidade da convivência com o diferente; ou seja, a morte da política.

O filme é uma lente de aumento sobre o negativismo e o obscurantismo, que no Brasil já domina uma parte da população.

Na Grécia, idiota era a pessoa restrita ao ambiente da vida privada sem interesse nos assuntos da cidade e nas questões do Estado. Em outras palavras, não participava das decisões sobre a polis. Para os gregos, idiota era uma pessoa sem instrução e, nessa condição, considerado inferior.

Ainda não havia naquela época histórica a conotação pejorativa sobre a expressão idiota.

O problema, na contemporaneidade, é a ressignificação do conceito e a expressiva participação dessa forma de comportamento na vida pública.

A internet e os equipamentos de produção e distribuição de conteúdo proporcionaram as condições materiais e virtuais para a difusão da idiotia como fenômeno social.

O idiota não é mais o indivíduo grego ensimesmado na sua tarefa de prover a vida doméstica sem se importar com a coletividade. Nos tempos atuais o idiota participa ativamente da polis, vai às manifestações de rua, prega a destruição das instituições, despreza a Ciência, repudia o Jornalismo, idolatra o presidente bizarro, é agressivo, convicto da sua verdade e não admite o contraditório.

Enfim, os sinais do filme estão vivos em nosso cotidiano.

Tomara que a vida não imite a arte.

Como assistir ao filme Idiocracia

O único homem inteligente…

O filme não está disponível nas plataformas YouTube nem canais fechados de TV ou Netflix e assemelhados.

Para acessar o conteúdo é necessário, primeiro, baixar o programa Utorrent e em seguida fazer o download pelo link (https://ondebaixa.com/idiocracia-download-via-torrent/)

Imagem destacada / deputado federal Nikolas Ferreira, de peruca, na Câmara Federal / Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados