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Colapso do ESG: organizações quilombolas denunciam retrocesso jurídico favorável às violações ambientais da EDP

A empresa EDP (Energias de Portugal) é um dos maiores grupos energéticos da Europa, com operações em 30 países. Apresenta-se globalmente como líder em energias renováveis e defensora da transição energética. No entanto, a atuação local no Maranhão revela contradições gritantes entre o seu discurso e as práticas operacionais

São Luís (MA) – Uma coalizão formada por 21 entidades da sociedade civil (veja lista ao final da postagem) denuncia um grave retrocesso jurídico e institucional no Maranhão, expondo a distância entre o discurso corporativo de sustentabilidade e os direitos das comunidades quilombolas no estado mais pobre do Brasil.

Em manifesto encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF), as organizações criticam duramente um acórdão da 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região — composta pelos desembargadores federais Newton Ramos (presidente/relator), Rafael Paulo e Pablo Zuniga — que reformou decisão de primeira instância e autorizou a continuidade das operações da empresa EDP Transmissão MA I S.A. (subsidiária da EDP Energias do Brasil S.A.), sem a devida Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) às comunidades quilombolas afetadas.

Segundo as entidades, a decisão viola frontalmente os direitos consagrados na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) — incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro — e ignora recente jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, especialmente o caso Comunidades Quilombolas de Alcântara vs. Brasil, cuja sentença obriga o Estado a assegurar a consulta prévia como um dever vinculante, e não uma opção.

No processo nº 1021678-49.2024.4.01.0000 (1º Caso), o TRF-1 suspendeu os efeitos de medidas protetivas anteriormente concedidas pela 8ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Maranhão, liberando a operação da Linha de Transmissão Miranda II – São Luís II – C3, mesmo diante de licenciamento ambiental questionado e da ausência de consulta formal às comunidades quilombolas de Anajatuba, Itapecuru-Mirim e Santa Rita (MA).

A licença foi emitida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) sem a realização de estudo do componente quilombola pelo Incra e sem qualquer diálogo com as populações impactadas. A decisão do TRF-1 desconsiderou ordem da Justiça Federal de primeira instância (maio de 2024) que havia determinado a revisão do licenciamento e a execução da CPLI conforme a legislação vigente.

O manifesto das entidades destaca quatro violações centrais no acórdão do TRF-1:

1. Restrição indevida do direito à consulta: a exigência de prova de “impacto direto” para justificar a CPLI contradiz o princípio da precaução e esvazia o direito à consulta preventiva, previsto na Convenção 169 da OIT;

2. Confusão conceitual entre audiência pública e consulta qualificada: o acórdão equipara meras audiências públicas genéricas ao processo específico de consulta livre, estruturado e realizado por meio das representações legítimas das comunidades;

3. Desconsideração da Portaria Interministerial nº 60/2015: a decisão ignora as diretrizes técnicas e normativas que regulam a participação de órgãos como o Incra e a Fundação Cultural Palmares no licenciamento de projetos com impacto sobre territórios quilombolas;

4. Validação de ilegalidades pelo fato consumado: a tese de que o avanço físico da obra justifica sua continuidade ignora o vício de origem no processo, legitimando práticas que atropelam direitos constitucionais.

O desrespeito ao direito de consulta prévia das comunidades tradicionais, evidenciado no caso das linhas de transmissão, não é um fato isolado. Um exemplo notório é a construção da estrada conhecida como “Travessia da Baixada” (2º Caso), que avançou sobre os Campos Naturais, nos municípios de Anajatuba e São João Batista. Este empreendimento foi iniciado com uma Dispensa de Licenciamento Ambiental, sob a justificativa de baixo impacto — tratando-se da mera “melhoria de uma estrada existente” (que nunca existiu).

A abordagem, no entanto, desconsiderou a existência de ao menos sete comunidades quilombolas impactadas, e negligenciou o componente quilombola obrigatório, provocando entulhamento de passagens, alagamento de residências, exclusão das vozes locais e graves impactos ambientais.

DIREITO À CONSULTA LIVRE E INFORMADA

As omissões do Estado do Maranhão em relação à CPLI tem sido objeto de múltiplas intervenções judiciais. Na ACP nº 0856157-69.2021.8.10.0001 (3º Caso), proposta pela Defensoria Pública Estadual com apoio da sociedade civil, foi firmado acordo que originou a Portaria Conjunta SEDIHPOP/SEMA nº 1/2022, regulamentando a atuação conjunta entre órgãos estaduais para garantir a CPLI. Ainda assim, as violações se repetiram. Isso levou à proposição de nova ação (processo nº 0867168-27.2023.8.10.0001), forçando modificação da Portaria Sema nº 76/2019 para obrigar servidores da secretaria a promover a CPLI nos casos cabíveis.

Mesmo assim, no caso da Travessia da Baixada (2º Caso), as comunidades só foram reconhecidas após forte pressão popular, com as obras já em curso. Posteriormente, a liminar da Ação Popular nº 1011269-69.2024.4.01.3700 determinou a suspensão das obras até que a CPLI fosse realizada. A 11ª Turma do TRF 1ª região novamente interveio, suspendendo a liminar e permitindo o prosseguimento imediato das obras, atendendo a recurso do próprio Governo do Estado.

A atuação do Governo do Maranhão, portanto, não é de omissão passiva, mas de conivência ativa e reincidência institucional na violação sistemática do direito à consulta. Essa postura afronta o sistema de proteção aos direitos territoriais e culturais das comunidades tradicionais e fragiliza a confiança no próprio Estado Democrático de Direito.

A situação é agravada pelos impactos já sentidos nas comunidades, como o desaparecimento de áreas tradicionais de pesca e agricultura, além da degradação de campos naturais alagáveis, essenciais para a subsistência das famílias quilombolas.

As linhas de transmissão geram um passivo ambiental silencioso e duradouro, com desmatamento para corredores de passagem, fragmentação de habitats, alteração de regimes hídricos e poluição sonora e visual. Seus impactos atingem particularmente comunidades tradicionais, cujos modos de vida estão intrinsecamente ligados ao equilíbrio ecológico desses ecossistemas.

A ausência de medidas compensatórias e de recuperação de áreas degradadas intensifica a injustiça ambiental, especialmente quando esses empreendimentos se instalam em Unidades de Conservação ou zonas úmidas protegidas, como é o caso da Baixada Maranhense.

ÁREA PROTEGIDA PELA CONVENÇÃO DE RAMSAR

As áreas úmidas (wetlands) da Baixada Maranhense — reconhecidas como Sítio Ramsar desde 2000 — possuem importância ecológica e cultural incomparável. São berçários naturais de inúmeras espécies aquáticas, fundamentais para segurança alimentar, controle de cheias, recarga de aquíferos e regulação climática. Também sustentam a economia de subsistência de milhares de famílias quilombolas, pescadores e agricultores familiares. Qualquer intervenção sem consulta e sem avaliação rigorosa de impactos nesses territórios representa risco à biodiversidade e ao patrimônio cultural imaterial brasileiro.

Nesse contexto, o combate ao greenwashing torna-se central na luta por justiça climática. Estratégias de marketing que apresentam projetos predatórios como sustentáveis — utilizando rótulos como “verdes” ou “voltados à transição energética” — ocultam violações de direitos e impactos ambientais profundos. Essa maquiagem ambiental mina a credibilidade de compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais como o Acordo de Paris e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), além de gerar desinformação pública.

A empresa EDP – Energias de Portugal, responsável pela obra da linha de transmissão em questão, é um dos maiores grupos energéticos da Europa, com operações em 30 países. Apresenta-se globalmente como líder em energias renováveis e defensora da transição energética. No entanto, a atuação local no Maranhão revela contradições gritantes entre seu discurso ESG e suas práticas operacionais.

No Brasil, a EDP atua em geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, tendo ampliado fortemente sua presença nos últimos anos. Embora destaque publicamente seu compromisso com a sustentabilidade, casos como o da Linha Miranda II – São Luís II – C3 evidenciam desrespeito a direitos fundamentais e deficiências graves no cumprimento das obrigações socioambientais. A falta de transparência, a ausência de consulta e o acúmulo de impactos não mitigados revelam um padrão de violação que compromete sua legitimidade social.

SOLICITAÇÃO AO MPF

Diante desse cenário, as entidades signatárias solicitam ao Ministério Público Federal que interpele recurso cabível para restabelecer a decisão de primeira instância e, se necessário, leve o caso às instâncias superiores. O objetivo é garantir a realização da CPLI e a reparação de danos já evidentes.

A mensagem é clara: não se trata de oposição ao desenvolvimento ou à infraestrutura energética, mas sim de exigir que qualquer projeto respeite os direitos territoriais, culturais e ambientais das populações tradicionais. A consulta prévia é uma garantia democrática, não um entrave. E a sua violação não pode ser normalizada.

As organizações alertam que permanecerão mobilizadas e vigilantes. Confiantes na atuação do MPF e na responsabilidade do Judiciário, esperam que o curso do processo seja corrigido, restabelecendo a legalidade e protegendo os quilombolas do Maranhão contra mais um capítulo de invisibilização institucional.

Veja a lista de entidades signatárias do documento encaminhado ao Ministério Público Federal

1. COORDENAÇÃO NACIONAL DE QUILOMBOS – CONAQ

2. UNIÃO DAS ASSOCIACOES DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS DO MUNICIPIO DE ANAJATUBA – UNIQUITUBA

3. UNIÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS QUILOMBOLAS DE ITAPECURU-MIRIM

4. JUSTIÇA NOS TRILHOS – JNT

5. CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES (MARANHÃO) – CPP

6. ARTICULAÇÃO NACIONAL DAS PESCADORAS – ANP

7. FÓRUM CARAJÁS

8. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DE PONTA GROSSA DO QUILOMBO MONGEBELO 1

9. ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DOS PRODUTORES RURAIS DE TESO DA TAPERA

10. ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DOS TRABALHADORES RURAIS DO POVOADO JUÇARA

11. ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DOS TRABALHADORES RURAIS DO POVOADO JAIBARA DOS RODRIGUES

12. ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO POVOADO PAPAGAIO – SANTA RITA/MA

13. ASSOCIAÇÃO AMBIENTAL ORLA VIVA – SÃO JOSÉ DO RIBAMAR

14. ASSOCIAÇÃO MARANHENSE PARA A CONSERVAÇÃO DA NATUREZA-AMAVIDA – SÃO LUÍS

15. CENTRAL SINDICAL E POPULAR – CSP/CONLUTAS

16. COMITÊ DE SOLIDARIEDADE À LUTA PELA TERRA – COMSOLUTE

17. ASSOCIAÇÃO DE ADVOGADOS DO POVO GABRIEL PIMENTA/ABRAPO-MARANHÃO

18. GEDMMA/UFMA – GRUPO DE ESTUDOS: DESENVOLVIMENTO, MODERNIDADE E MEIO AMBIENTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

19. GRUPO DE VALORIZAÇÃO NEGRA DO CARIRI – GRUNEC

20. MOVIMENTO DE DEFESA DA ILHA

21. COMITÊ QUILOMBOLA DE SANTA RITA – MARANHÃO

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