Categorias
notícia

Vida e história

Eloy Melonio é cronista, contista, poeta e letrista.

Sexta-feira, 18 de julho de 2025.

Uma data perdida no tempo é só uma data. E que, como muitas outras, pode referir-se a um trecho do caminho de cada um de nós. No entanto, dependendo das circunstâncias, pode ser um dia qualquer em abril ou uma sombra aprisionada num calendário de nossa vida.

Dito isso, vida e história são parceiras de longas datas. Andam de mãos dadas no rastro do tempo. Na história da humanidade e na literatura universal não dá para separar uma da outra. Elas se cruzam, mas não se separam. Que seria de mim se não soubesse quando nasci, de onde vim, por onde passei?

Numa cena da novela “Dona de mim” (Rede GLOBO, 2025), uma crise afetiva entre pai e filho chamou minha atenção. Abel (Tony Ramos), pai de Davi (Rafael Vitti), pergunta: “Em que trecho do caminho nós nos perdemos?” Imagino que você sacou o contexto dessa cena: duas vidas e duas histórias.

Dia desses, minha esposa trouxe para a mesa da cozinha alguns envelopes entupidos de fotografias. Um prato cheio com pedacinhos de nossas vidas. Em alguns momentos, dúvidas: “Quem é essa pessoa ao lado da sua mãe?” Em outros, emoção: “Caramba! Olha você aqui nas Cataratas do Niagara!”

Nem sempre tínhamos respostas para algumas dessas surpresas. Mas o que nos animava era o deslumbramento diante dos flagrantes da nossa história. Em alguns momentos, o coração batia mais forte. Noutros, eram os olhos que umedeciam. Em cada foto, uma constatação: somos parte da história de outras pessoas, assim como elas também marcam nossas recordações. Ninguém tem uma história de solidão. Porque — filosófica ou poeticamente — até a nossa sombra pode ser uma companhia indispensável.

Um dos resgates foi a “preciosidade” que ilustra esta crônica. Porque revela um momento memorável que quase se perde na névoa das lembranças. Nela, eu (minha esposa e um amigo) apareço com Vilfredo e Heloisa Schurmann, velejadores catarinenses, que estavam em São Luís em 1996 para uma palestra. Fui encarregado de acompanhá-los durante o dia (passeios, etc.). Na foto, momento de um almoço regado a muitas histórias e aventuras desse casal cuja vida são os mares do mundo.

Prefaciei, recentemente, o livro de memórias “A Lâmina do Machado”, do escritor Misael Rubim (Icatu-MA). Apesar dos detalhes de sua infância e adolescência, o protagonista é o seu pai e sua história de vida, marcada por trabalho, coragem e honradez. Mas o que chamou minha atenção foi o episódio em que, após a morte do pai (que viera morar com ele na capital para se tratar de um câncer), o autor volta à sua terra para resolver algumas pendências. Certo dia, enquanto cavalgava por uma rua da pequena cidade, percebeu que as pessoas o olhavam com certo espanto. Até que, numa parada ocasional, alguém se manifestou: “Não sei quem é o senhor, mas o cavalo é do Domingos Rubim, não é?”.

Duas mortes recentes me afetaram sobremaneira: o cantor Carlindo Filho, amigo e parceiro, morte precoce, vítima de um câncer. O outro, aos noventa e seis anos, o gramático e filólogo Evanildo Bechara. Para o artista da música: RIP (Rest in Peace). Para o artista das palavras: DEA (Durma entre suas Amadas).

Dizem que o velório é um bom momento para se rever histórias de vida. Os grupos de conversa são inevitáveis. Fica-se sabendo das “novidades e curiosidades”. Sim, os mortos têm novidades! Numa dessas situações, soube que um amigo (vivo e presente ao velório) tinha sérias desavenças com o irmão (defunto). Infelizmente nada ficou acertado entre eles, e a pendência só será resolvida num outro cenário além-hoje e além-mundo.

Infelizmente, a história de cada um de nós tem um fim. Porque a nossa vida é como as águas de um rio que correm, correm, até se jogarem no cemitério-mar. Não há outro caminho. A história do mundo, ao contrário, é um infindável carnaval. Séculos e séculos de um desfile que nunca chega à praça da Apoteose.

Uma coisa é certa: não se pode mudar a história de vida de uma pessoa. Nem a multifuncional “IA” tem essa pretensão. Porque o tempo (passado ou futuro) é uma muralha intransponível. Um diretor de cinema pode refazer uma cena de que não gostou, mesmo depois do “The End”. Mas não pode mudar nenhum trecho de que foi protagonista na vida real.

Você lembra a data na abertura desta crônica? Pois é, ela faz parte da minha história de vida, bem mais curta que os dez mil anos de Raul Seixas. Eu nasci numa sexta-feira de julho de 1952.

Se é assim, viva a nossa vida, e viva a nossa história!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *