Eloy Melonio é professor, escritor, poeta e letrista.
Ouço gritos que vêm não sei de onde. Não sei e sei ao mesmo tempo. Do recôndito da minha alma, das páginas da minha vida, do curso da história.
Devia ter escrito esta crônica antes do dia 20 — Dia da Consciência Negra — para publicá-la na data desse tão significativo grito de resistência. Infelizmente, tinha outras coisas tomando meu tempo, igualmente importantes, mas com deadline. E aí, — sabe como é — prazo é uma armadilha que pode atrapalhar a vida de qualquer um de nós. Mas para falar de beleza e consciência não se precisa de calendário nem relógio. Concorda comigo?
Concedido o autoperdão, tento — aqui e agora — juntar momentos desta travessia para tecer uma colcha de retalhos que, de certa forma, traduz a minha história. Sem teorizar, pretendo testemunhar o que “vi” e o que “senti” no convívio com muita gente.
Começando do começo: Marta e André, um casal de pretos de fina estripe. Não, eles não eram personagens de um lovestory português. Eram meus padrinhos, na Rua Duque de Caxias, no João Paulo. Gente simples e adorável. Mas confesso que, inicialmente, não via neles “beleza” alguma quando, ainda criança, ia buscar carambolas que minha madrinha pegava no seu quintal. Sua gentileza excedia qualquer beleza física. Hoje, vasculhando minha memória fotográfica, vejo nitidamente como era bonito o sorriso de Dona Marta e o olhar de Seu André.
Da Rua Duque de Caxias para o São Francisco — uma vila que se formava do outro lado do centro da cidade, antes da construção da ponte Gov. José Sarney, inaugurada em 1970. Nesse novo cenário, outros atores. Dentre eles, Negão — um pretinho 3 ou 4 anos mais velho (e mais alto) do que eu — que jogava o fino da bola. Nas peladas de toda tarde (férias ou não), estávamos sempre juntos. Minha maior alegria era quando jogávamos do mesmo lado. À porta da adolescência, já saíamos à noite para paquerar. Nunca soube seu nome de registro. Era Negão, e só. Um preto bonito, de andar elegante. E amigo de verdade. Certa vez, tomou as minhas dores numa confusão típica dos campinhos de pelada.
Mais um porto e chego ao Cohab-Anil, um dos primeiros conjuntos habitacionais de São Luís (1967). Aqui, outros pretos entram em campo. E a beleza sai do aspecto físico para se aquietar na alma dessa nova turma. Amigos das peladas e dos primeiros times organizados do bairro. Um deles deixou boas lembranças. Alegre e brincalhão, Cabeça era o cara. Bom de papagaio (pipa), eventualmente ensinava seu filho os truques de uma “lanceada” perfeita. Craque da bola e das conversas, esse amigo “não era belo”, mesmo assim sabia valorizar as amizades.
Minha vida daria um time de pretos. A avó de minha esposa, preta; a minha avó, filha de pretos. O padrinho de minha primeira filha, preto. A lista segue por mais alguns parentes, amigos e parceiros. Hoje — talvez mais do que no passado — conseguiria reunir duas ou três dúzias dessa gente pra uma festa com as cores da amizade. E deixar claro que virtude e caráter não carregam o estigma da cor da pele, mas da alma.
Na foto ilustrativa, estou com dois ícones da música popular maranhense, numa festinha de amigos. Célia Sampaio, a dama do reggae, e Carlos Quirino, um bamba do nosso samba. Ambos, admirados, respeitados e amados. Gente de quem me orgulho ser amigo e parceiro. O mais novo desses é também um parceiro musical com quem já compartilho duas letras. Luís Fernando Prego é uma beleza de pessoa. Educado, bom papo e bom caráter, aquela pessoa com quem você passaria horas e horas conversando.
Saindo do âmbito pessoal para o nacional, pode-se, facilmente, escalar uns vinte e tantos times com essa gente digna de aplausos por sua beleza e representatividade. Pelé, Elza Soares, Gilberto Gil, Neguinho da Beija-flor, Milton Nascimento, Iza… E, parafraseando um amigo, o “top dos tops” do momento, por seu posicionamento firme contra o racismo. Falo de Vini Jr., esse brasileiro do Real Madrid que é o grito da vez na valorização de uma “consciência” que vai além dos estádios, das datas e das celebrações.
Neste barco cheio de vida, encontrei gente de diferentes etnias, nacionalidades, religiões. Sempre olhei mais para a cor do seu caráter do que para a cor de suas camisas ou blusas. Porque essa é a beleza que se carrega nos dias de chuva ou sol, nas noites de frio ou calor, nas horas de alegria ou tristeza. E na bagagem de nossa consciência coletiva de que “somos gente” e é isso que nos define como “humanos”.
Leis, projetos, programas, datas comemorativas — tudo isso é tão significativo e indispensável quanto a consciência de que somos, todos, filhos da mesma terra, ao ventre da qual voltaremos após a morte.
Não posso deixar de citar esta beleza que poderia ser o hino da consciência negra: “Negro é uma cor de respeito/ Negro é inspiração/ Negro é silêncio, é luto/ Negro é solidão” (“Sorriso Negro”, música de Dona Ivone Lara e Jorge Ben Jor).
Yes, “blackisbeautiful”. Assim como todas as outras cores. Porque o belo está mais no “sentir” do que no “ver”.
Eloy Melonio é professor, escritor, poeta e letrista.