“Pensem no Natal, pensem nas criancinhas.”
(Pelé, em 1969, ao marcar seu milésimo gol)
Eloy Melonio
A saudosa Dona Ivone Lara (1921-2018) celebra com sua voz inconfundível uma das mais simples e mais belas canções de exaltação ao povo negro: Um sorriso negro/ Um abraço negro/ Traz felicidade.
Refere-se a cantora carioca a tantos e tantos negros que enobreceram sua cor com trabalho, sofrimento, abnegação,…e arte.
Ontem (29 de dezembro de 2022, às 15h27) um desses negros se despediu de sua terra e de sua gente para se juntar aos muitos outros que figuram no panteão da eternidade. Mas não levou apenas “o sorriso e o abraço” da Dona Ivone, porque, em sua bagagem, cabem muitas outras coisas.
Entre elas, a arte. Porque a arte é colorida e as suas cores são pétalas de alegria. O verde do gramado, o azul e o amarelo de sua camisa, o branco da bola. E, porque sendo “capacidade criadora de expressar sensações e sentimentos”, a arte estará com ele onde ele estiver. Num vídeo, numa foto, numa estátua, nas páginas de um livro. Na camisa 10 do Santos e da Seleção Brasileira. E na nossa lembrança.
Aliás, foi com ele que o “esporte” ― especialmente o futebol ― conquistou esse status. Porque o que ele faz se encaixa na definição acima mencionada, de Marilena Chauí. Entre tantos exemplos, ele foi o primeiro a cabecear a bola de olhos abertos. E fez muitos gols assim.
Nosso artista não apenas jogava, mas sorria para o adversário e corria para o abraço. E essa corrida para a torcida era seguida de um salto comum soco no ar, sua marca registrada. Era o belo em sua mais áurea expressão.
O futebol era a própria arte no placo dos estádios sempre lotados. E a audiência, disfarçada de torcida, aplaudia e gritava “gol”. A arte da bola aos pés de quem dança, ginga como um equilibristae faz dela seu microfone para denunciar o descaso das autoridades com as crianças. Essa mesma bola que ele beijae estufa as redes inquietas,fazendo a torcida delirar.
A vida desteartista é a artede suaprópria vida. No sorriso, na humildade, na excelência. No coração que fala através das palavras e gestos, nos pés que cantam uma sinfonia futebolística e nos gols que eternizaram a sua imagem.
Ele é tudo isso e muito mais: o passe perfeito, o drible desconcertante, a “cabeçada” certeira, a jogada inesperada… o gol. A voz firme, a opinião tenaz, o gesto simples e capaz de encantar uma criança, um soldado em guerra, uma rainha, presidentes e pontífices.
No coração, a ânsia de marcar gols. No campo, o corpo em movimentos imprevisíveis. No rosto, a alegria do sorriso simples; nos gols de placa, a camisa 10 da perfeição. No placar, a vitória, a glória. E, na saudade, a eterna lembrança.
A arte de Dona Ivone Lara e do saudoso Rei do Futebol certamente deu uma aura diferenciada ao adjetivo “negro”: competência, vitória, sucesso, brilho, inspiração, respeito, liberdade.
Peço emprestado de Drummond o “anjo torto” (hoje regenerado) para autorizá-lo a nos representar nesta triste despedida. Se, ele, claro, aceitar o nosso script: “Vai, Edson, vai ser Pelé lá no céu também!”
Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta.
Imagem destacada / Gol de Pelé contra a Checoslováquia com seu famoso soco no ar, na Copa do Mundo do México-1970