Luiz Eduardo Neves dos Santos *
São Luís e os municípios vizinhos da ilha amanheceram nesta quarta-feira com grandes volumes de chuva. Algo, aliás, dentro da normalidade em nosso sistema climático, pois janeiro é um mês que, historicamente, possui bons índices pluviométricos, é o início do nosso “inverno”, como muitos dizem, embora nos encontremos no verão. O fato é que tais volumes de chuva têm ocasionado muitos problemas na ilha, os mais comuns são as inundações e alagamentos em avenidas e áreas residenciais, os engarrafamentos de veículos, os bueiros estourados e os transbordamentos de cursos d’águas, que hoje são esgotos a céu aberto.
O senso comum levanta a voz e diz “falta planejamento urbano em São Luís”. Mas se sabe que há muitas experiências de planejamento urbano em nossa cidade, que remontam pelo menos 2 séculos, desde as normas de ocupação e usos do espaço público deliberadas pela Câmara Municipal, passando pelas determinações dos Códigos de Postura até chegar a legislação urbana que conhecemos hoje (ou que não conhecemos), qual seja os planos diretores e as leis de uso e ocupação do solo. Estas últimas são dispositivos que abrem caminho para uma série de transformações nas áreas urbanas, embora não sejam os únicos mecanismos de planejamento estatal.
O problema é que os nossos gestores públicos e seus técnicos possuem uma concepção bastante equivocada de que estas leis bastam para dirimir infortúnios das populações urbanas, mas na realidade sua aplicação tem servido para aprofundar desigualdades, visto que atendem, prioritariamente, classes abastadas e o mercado imobiliário/construtor, do que chamo aqui de usurpadores urbanos.
Vejam o que tem acontecido nas discussões do Plano Diretor de São Luís: a proposta se arrasta desde 2015 – o projeto está desde 2019 na Câmara de Vereadores – e possui como objetivos primaciais a ruptura das últimas fronteiras urbanas no município para a instalação de um mega terminal portuário privado e a permissão da construção de edifícios (que podem chegar a 32 andares) em diversos territórios a partir da aprovação do Macrozoneamento Urbano e de uma futura aprovação da Lei de Zoneamento, complementar ao Plano Diretor. Tais objetivos atingem em cheio a sobrevivência de populações como a do Cajueiro e de outras comunidades rurais e não apresentam trabalhos técnicos mais detalhados que justifiquem essas modificações.
A reflexão que levanto aqui diz respeito ao papel do planejamento urbano em São Luís, um município em que quase 1/5 de seu território urbano é constituído de áreas ociosas, objetos da especulação imobiliária. As leis urbanas são reflexos da vontade do grande capital imobiliário/construtor, que em aliança com os poderes estatais, ditam a forma como o território será usado. Há muitos territórios a serem ocupados, não somente na zona urbana, o que é uma condição muito importante de São Luís em relação a outros municípios brasileiros com mais de 1 milhão de habitantes, que por sua vez, detêm uma forte intensificação dos seus solos urbanos, ou seja, São Luís tem a possibilidade de se desenvolver com uma ocupação mais equilibrada, infelizmente não é isso que nós observamos.
Frequentemente, o que há de bom nos dispositivos jurídicos urbanos, quase nunca é aplicado, me refiro a instauração dos instrumentos urbanísticos que podem contribuir para que sujeitos excluídos tenham acesso à uma cidade mais digna, podendo exercer sua cidadania. Mas o que vemos são gestores públicos distantes das demandas de uma população injustiçada e massacrada em seus direitos, enquanto reservam tempo e trabalho para atender as vontades de grandes empresários. Por que será?
Como escrevi recentemente em trabalho de pesquisa, São Luís necessita crescer e se desenvolver com qualidade de vida e justiça social para sua população, e isto passa, dentre outras questões, pela implementação de um planejamento urbano-territorial integrado, pela aplicação de instrumentos urbanísticos que cumpram a função social da propriedade e da cidade, a implantação de políticas sérias de regularização fundiária, investimentos em abastecimento de água e tratamento de esgoto, qualidade dos serviços e abrangência do transporte público e acessibilidade, estímulo à produção agrícola e pesqueira na zona rural, reflorestamento de área degradadas, conservação de territórios de interesse ambiental, acesso facilitado e gratuito à escolas e postos de saúde, além do acesso a outros equipamentos urbanos. Questões que podem ser concretizadas com a fusão de vontade política, capacidade e organização institucional de gestores públicos, monitoramento e cobrança da sociedade civil organizada à se mobilizar na efetivação de direitos e no cumprimento de seus deveres.
Mas é enganoso supor que apenas os Planos Diretores e a regulamentação de seus Títulos e Artigos possam dar conta do planejamento de uma cidade como São Luís, seus problemas estruturais e suas complexidades, mesmo porque no atual período, o da racionalidade neoliberal, há uma disseminação, como nos alertou David Harvey, de certas noções burguesas de gestão, de leis, de direitos, de democracia e de liberdade e, manter o mundo seguro para a democracia e as liberdades, foi e continua a ser considerado intimamente ligado à manutenção do mundo seguro para o capital, e vice-versa.
O planejamento urbano entendido a partir de leis aplicadas reforça uma noção técnica, burocrática e cínica de se pensar São Luís, já que ignora a cidade concreta e suas desigualdades, se recusa a dar visibilidade e voz aos excluídos, que não são estimulados à participar e dar ideias sobre as angústias e tragédias que vivem no cotidiano. Em virtude disto, impera no município as práticas paternalistas e clientelistas, tanto da parte de grandes empresas, quanto por parte de certos agentes públicos, que através de seus nichos eleitorais pauperizados, cooptam lideranças locais, fazem favores e disseminam discursos que prometem melhorias na vida desses grupos, tudo em troca de apoio político.
As chuvas continuarão a provocar estragos na cidade enquanto gestores públicos, legisladores e empresários atuarem no sentido de pensar em seus próprios interesses. Eles abrem a boca para falar em desenvolvimento e geração de emprego e renda, o que na verdade não passa de um discurso cínico que camufla os seus desejos insaciáveis por lucro e poder.
* Geógrafo, professor da UFMA e membro do Movimento de Defesa da Ilha (MDI).