Eloy Melonio é contista, cronista, letrista, poeta e produtor cultural.
Da minha casa, eu o via descendo a ladeira, já no finzinho da rua. E a sua choupana, toda de palha de babaçu, ficava a umas sete casas antes da nossa, que era a penúltima. A velha calça jeans apertada revelava suas pernas um tanto cambotas. O chapéu de palha tinha as abas laterais dobradas para cima. E, obviamente, ele não se parecia com John Wayne ou Steve McQueen. E — não menos obviamente — queria mesmo era parecer-se com um cowboy, personagem típica dos gibis e filmes de faroeste, muito populares nos anos 1960.
Assim era Santinho, apelido desse meu amigo cujo nome eu nunca aprendi. Eu devia ter 13 ou 14 anos quando ia à sua casa para trocar gibis do Cavaleiro Negro, Billy the Kid, Buffalo Bill, entre outros mocinhos do bang-bang. E ele, um tipo ermitão de aproximadamente cinquenta anos, vivia essa personagem no seu dia a dia. Não saía de casa sem a indumentária típica do velho oeste americano.
A lembrança de Santinho me fez pensar em outras pessoas que, hoje, circulam entre nós. Pessoas que fazem questão de serem notadas não pelo que realmente são, mas por uma personagem criada por elas mesmas, a qual cultuam e pela qual esperam ser reconhecidas.
Posso até elaborar uma lista de tipos: o artista, o esportista, o literato, o intelectual, o religioso.
Nesse contexto, “personagem” é alguém que chama a atenção pela forma como se apresenta em público ou pelas situações em que está sempre presente. E, assim, o “esportista” é aquele que habitualmente usa tênis, calça legging, boné, camisa de time ou de grife esportiva, mesmo não praticando nenhum esporte.
Sabe-se que personagem é uma figura imaginada por um autor. Mas, na vida real, é a idealização que alguém faz — consciente ou inconscientemente — de si mesmo, como no caso do meu amigo Santinho.
Um homem que eu geralmente via no ônibus do meu bairro me foi apresentado, muitos anos depois, no lounge do Teatro Arthur Azevedo. Nesse dia, conheci alguém que já conhecia, pelo menos de vista. Refiro-me a Zé da Chave, personagem muito popular entre os frequentadores do teatro, especialmente nos shows musicais. Sempre com um chaveiro à mão, atreve-se aqui e ali a tirar uma onda de percussionista, acompanhando trechos das músicas cantadas no palco. Reencontrei-o recentemente no show de Joãozinho Ribeiro (Canções de Amor e Paz/22-9-2023). Ocasionalmente eu o vejo por aí, enquanto o senhor do ônibus se perdeu nas ruas do passado.
Recentemente, enquanto esperava o início de um evento, a senhora ao meu lado tocou-me com o cotovelo para chamar minha atenção: “Acho que o homem chegou”. Minha incauta vizinha referia-se ao tão esperado palestrante da noite. Mas o recém-chegado era alguém como nós (audiência), só que mais articulado, saudando e falando com quase todo mundo. Do tipo caricato, “chegou chegando”, como se diz na linguagem popular.
Santana, jogador do Moto Clube nos idos de 1960, era um ídolo para os peladeiros que, como eu, tinham entre treze e quinze anos. Meio-campista de excelente nível técnico, chegou a fazer teste no Fluminense do Rio de Janeiro. Após os treinos matinais no Santa Izabel, no Canto da Fabril (hoje templo da Igreja Universal), ele e alguns colegas eventualmente subiam a Rua Grande, logradouro mais movimentado do centro comercial da cidade. Ou melhor, “desfilavam”. Mesmo os não afeitos ao esporte sabiam tratar-se de jogadores de futebol. Pela roupa, pelos gestos, pelo andar — pela ginga, afinal.
Um dos meus amigos tentava imitá-lo. E se saía muito bem nas ruas e nos corredores da escola, mas não tão bem assim nos campos de futebol. Enquanto isso, outros buscavam inspiração nos ídolos da Bossa Nova e da MPB para viver suas personagens com uma entrega de dar inveja ao Bentinho, de Machado de Assis ou o mulato Raimundo, de Aluísio Azevedo.
Sem interferência de seu ego, a verdadeira personagem nasce naturalmente. Um caso emblemático é o do deputado Ulysses Guimarães (PMDB), presidente da Câmara dos Deputados de 1985 a 1989. O emérito parlamentar ganhou e “encarnou a imagem” do Senhor Diretas, apelido carinhoso em reconhecimento à sua luta pela redemocratização do país na década de 1980. Em sua vida pública, o Dr. Ulysses foi a voz e o braço da democracia brasileira.
Lembro-me perfeitamente da personagem de um quadro do programa Zorra Total (GLOBO/1999-2000) que ficou muito popular com o bordão “Cara, crachá/Cara crachá”. Porteiro rigoroso, ele exigia a identificação de cada visitante para permitir seu acesso ao Projac (estúdios Globo), mesmo quando esse(a) se dizia amigo(a) dos figurões da emissora, falando e gesticulando como eles.
Sem vacilar, Severino (Paulo Silvino) não deixava ninguém entrar sem a devida identificação. E não se cansava de reafirmar o rigor da exigência, pois, para ele, não bastava “parecer”, era preciso “ser”.
E, aqui, um lembrete aos caras de pau dos nossos dias: não é porque vocês sabem fazer umas embaixadas que podem aparecer no treino do Flamengo. Ou porque escrevem algumas “linhas” que vão entrar para a Academia Brasileira de Letras.
Sobre a atriz Elizângela, morta no dia 3 de novembro de 2023, a autora global Glória Perez disse, no mesmo dia, em suas redes socias: “Ela vestia, sem pudor, a pele de suas personagens”. Da mesma forma, a novela da vida real só aceita “atores e atrizes” que sigam seu roteiro ao pé da letra e cuja cara corresponda fielmente à sua identificação no crachá.
De personagens os livros e os filmes estão cheios. E, se é lá o seu habitat, que fiquem por lá mesmo!
Imagem destacada capturada no site sallve
9 respostas em “Pessoas e personagens”
Mais um excelente texto da autoria do Eloy. Com ele somos instigados a refletir sobre a personagem do qual trata, tão comum em nossos meios. Parabéns!
Muito boa crônica. Neste nosso mundo literário, abundam figuras com esse perfil. Conheço alguns que escrevem meia dúzia de baboseiras e, por não submeterem tais mediocridades textuais para a crítica externa, fecham-se em seus mundinhos de utopia e se autodeclaram literatos. Tem gente até que, mesmo sem nunca ter estudado teoria literária tampouco estudos avançados em língua portuguesa, arvoram-se a autoridade de críticos literários. Coisa de doido.
Belíssimo texto! Parabéns!!!!
O meu melhor contista.Adoro!!
Lembrei-me da troca de revistas da época que fazíamos antes de entrar na sessão para assistir os filmes, no Cine Rialto, na Rua do Passeio. Também tínhamos a relação dos filmes já assistidos num caderno especial. Era um ritual a venda ou troca de revistas e os cadernos de quem haviam assistidos as películas, disputa saudável e acolhedora!
Eloy não veste o personagem de craque das crônicas; ele, efetivamente, é muito bom nesse tema… não precisa representar.
Eloi, sua crônica faz lembrar fielmente, personagens q conviveram conosco e q parecem ainda estarem vivos.
É bom de vez em quando, nos deleitarmos com uma crônica de Eloy. O cara escreve como se tivesse conversando com a gente, em um bom bate-papo de fim de tarde, mostrando que temos excelentes “ourives da pena”.
Parabéns, Eloy mais um excelente texto. Uma volta ao passado, buscando personagens e ações peculiares que só nossa geração viveu.