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Justiça Federal arquiva inquérito policial contra os índios Akroá Gamella acusados de roubo, no caso Equatorial Energia

A pedido do Ministério Público Federal (MPF), o juiz Luiz Régis Bomfim Filho decidiu pelo arquivamento do inquérito policial contra oito indígenas da etnia Akroá Gamella, sediados em Viana, na Baixada maranhense, a 214 Km de São Luís. Eles haviam sido acusados de roubo qualificado de armas de fogo e munições durante a invasão do território Taquaritíua por supostos seguranças privados a serviço da Equatorial Energia. A investigação a princípio foi conduzida pelo delegado da Polícia Civil Marcelo Magno Ferreira e Souza.

Transferido para a esfera federal, o inquérito foi arquivado por falta de provas. De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), “a tomada das armas de fogo e as respectivas munições durante o ocorrido constituiu conduta desprovida de reprovabilidade, uma vez que não se identifica no feito a intenção dos indígenas de se assenhorearem da alegada res furtiva, mas de meramente impedir a instauração de um conflito armado, colocando em risco a vida dos membros da comunidade, dentre eles crianças, mulheres e idosos.”

Em 18 de novembro de 2021, dois homens armados com pistolas e munições, a bordo de uma caminhonete, adentraram no território indígena e identificaram-se como “seguranças privados” a serviço da Equatorial Energia. Ao perceberem o carro, os Gamella fizeram uma abordagem preventiva, recolheram as armas e as munições e retornaram às suas casas nas aldeias, quando foram surpreendidos por viaturas da Polícia Militar (PM) efetuando prisões sem ordem judicial e outras medidas arbitrárias como tiros para o alto e bombas de efeito moral para intimidar e coagir os aldeados.

As armas recolhidas foram identificadas como de uso da PM, revelando a verdadeira identidade dos supostos seguranças privados: eles eram policiais militares à paisana prestando serviço ilegal para a Equatorial Energia.

A empresa tentava instalar uma linha de distribuição de energia (LD Miranda) na área indígena, mas encontrava resistência. Os Akroá Gamela solicitavam diálogo sobre a construção da obra, diante dos impactos que causaria dentro das terras, que passam por um longo processo de demarcação no âmbito do governo federal.

Dois veículos da concessionária foram incendiados, sem identificação de autoria. Segundo nota da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Governo do Maranhão, funcionários da Equatorial Energia e policiais militares foram capturados como reféns. A SSP publicou a nota antes de qualquer depoimento ter sido tomado.

A PM deteve 16 pessoas sem mandado judicial e nem flagrante delito, sendo três mulheres, entre elas Craw Craw Akroá Gamella, de 49 anos. Conduzidos para as instalações de um posto de gasolina, na sede do município de Viana, passaram por constrangimentos, ameaças, insultos e interrogatório informal para revelarem o destino da arma recolhida.

Segundo os Gamella, durante a abordagem no posto, os policiais militares ofereceram liberdade às lideranças se eles entregassem a arma de fogo, configurando prisão arbitrária. “Achei que ia ter uma execução de nós”, cogitou Craw Craw. Já Cohtap Akroá Gamella recorda especialmente a fala de um policial exaltado, em uma sala reservada do posto. “Se as armas não aparecerem, vai ter merda!”, dizia o PM, em tom ameaçador. Em seguida todos foram transferidos para a delegacia de Viana. Em solidariedade, os indígenas de várias aldeias realizaram protesto e os detidos foram levados para a delegacia de Vitória do Mearim.

Oito detidos que tiveram flagrante lavrado pela Polícia Civil passaram pelo constrangimento de ter as cabeças raspadas, medida disciplinar extrema em casos de encarceramento. No dia da soltura, de volta para casa, todos os Gamella pelaram as próprias cabeças em solidariedade, durante um ritual de celebração da liberdade.

Advogados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em parceria com a Defensoria Pública do Estado (DPE), conseguiram liberar os detidos dois dias depois (20 de novembro).

Os indígenas também tiveram aparelhos celulares e filmadora apreendidos no momento em que registravam os fatos em vídeos e fotos. Com a decisão judicial, os equipamentos serão devolvidos. Cessam também as medidas cautelares que impediam os indiciados de sair do território e os obrigavam a se apresentar mensalmente à Justiça.

Para o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Rafael Silva, que atuou na defesa dos indígenas, o inquérito foi estruturado a partir de um absurdo jurídico e de racismo institucional. “Os Gamella estavam sendo acusados de roubo de arma de fogo da Polícia Militar, mas o inquérito ocultava um aspecto essencial. Os indígenas retiraram a arma do local do conflito para que não houvesse alguma coisa grave. Foi um ato de legítima defesa, sem qualquer violência contra aquele policial que prestava um serviço absolutamente ilícito. Ele não estava uniformizado, não se apresentou como policial e afirmou que estava ali a serviço da Equatorial; portanto, era um jagunço de fato. A arma foi entregue para a autoridade policial no mesmo dia pelos indígenas. Em nenhum momento aquilo consumava tipo penal de roubo”, explicou Silva.

Em nota divulgada à época, a Equatorial Energia sustentou a tese de que os indígenas haviam tomado os “colaboradores” da concessionária como reféns: “Na condução da obra, os colaboradores foram abordados pelos indígenas Akroá-Gamella pedindo a paralisação da obra e a suspensão das atividades, e na manhã do dia 18/11 quando a empresa enviou colaboradores na tentativa de agendar uma reunião com a finalidade de entender os pleitos, os indígenas se exaltaram, mantiveram todos reféns por algumas horas, tomaram as armas dos policiais que foram chamados para tentar controlar a situação e atearam fogo nos veículos da concessionária. Um reforço foi solicitado e os reféns foram libertados sem ferimentos”.

Segundo o Defensor Público Federal e integrante do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Yuri Costa, não havia liberação para a obra da linha de distribuição. “Pelo contrário, há uma decisão da própria Justiça Federal que suspende esse tipo de intervenção porque no curso dessa ação está se discutindo como se dará o licenciamento ambiental. Então a Equatorial, as pessoas que ela mandou, inclusive pessoas armadas, não tinham autorização para estar ali. Os indígenas reagem a isso dentro do seu território, exercendo um direito de todo cidadão que é proteger onde mora, onde vive, proteger os seus familiares desse tipo de invasão”, esclareceu Costa.

Ele destaca o arquivamento do inquérito em dois níveis de importância: trata o tema de forma coletiva e afasta a criminalização dos indígenas. “A decisão vai de encontro a essa criminalização. Reconhece que eles estavam coletiva e legitimamente no exercício do direito deles”, pontuou o defensor.

Em novo comunicado da Assessoria de Imprensa, a Equatorial Energia informa que pauta suas ações com ética e transparência, respeitando toda a sociedade (sem distinção de etnia, cor, raça ou credo). Disse também que tomou conhecimento da decisão judicial e confia na Justiça. “A Distribuidora esclarece, ainda, que, mesmo com todas as licenças e autorizações para retomar a obra da Linha de Transmissão Miranda do Norte – Três Marias, de grande relevância para o desenvolvimento socioeconômico da região da Baixada, vem buscando diálogo e entendimento com a comunidade indígena Akroá Gamella e demais órgãos competentes, portanto, buscando o cumprimento de seu dever de levar energia elétrica de qualidade para a população do estado, sempre com respeito ao direito de todos os envolvidos”, pontuou a empresa.

A advogada e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Maranhão, Lucimar Carvalho, considera o caso Equatorial uma continuidade da violência contra os indígenas, vitimados em 2017 pelo massacre que resultou em dois homens Akroá Gamella com membros decepados e vários feridos. Para Carvalho, os sucessivos episódios configuram um processo de apagamento da memória e de aniquilamento dos corpos, por isso a decisão judicial de arquivamento do inquérito é uma vitória fundamental a ser celebrada e tem um sentido de resistência diante de tantas violências contra os indígenas.

Leia aqui reportagem especial sobre o Massacre dos Gamella de 2017.

Imagens destacadas / (Fotos: Povo Akroá Gamella)

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