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“Geografia da fome” 75 anos depois

Por Luiz Eduardo Neves dos Santos, geógrafo e prof. Adjunto I da UFMA

Em 1946, quando Josué de Castro publicou Geografia da Fome, o Brasil tinha 41 milhões de habitantes e padecia de graves problemas: a esperança de vida era de 45 anos, a taxa de mortalidade infantil era de 147 óbitos a cada mil nascidos vivos, 56% da população acima dos 10 anos de idade era analfabeta e 69% vivia no campo. A obra pode ser considerada a mais relevante pesquisa socioespacial sobre o tema da fome já feita no país até hoje, primeiro pelo seu pioneirismo, segundo pelo rigor científico em abordagem qualitativa, feito em uma escala de análise espacial ampla e complexa, baseada no método geográfico interpretativo, e em terceiro lugar pela força e coragem da denúncia de um tema quase proibido na época.

Josué de Castro fez um mapa de áreas alimentares no país, dividindo-o em três tipologias, a saber: 1. Áreas de fome endêmica; 2. Áreas de epidemias de fome; e 3. Áreas de Subnutrição e a parte final do livro é dedicada ao Estudo do Conjunto Brasileiro. Traçou um perfil dos hábitos alimentares no Brasil como um todo, identificando carências específicas na Amazônia, no nordeste açucareiro e também no Centro-Sul.

Mas foi no território do Sertão Nordestino que o médico e geógrafo pernambucano mais concentrou seus esforços de análise, não por acaso, a região era castigada por episódios de fome severa, devido a estiagem cíclica. Baseado teórica e metodologicamente em geógrafos franceses como Pierre Deffontaines e Vidal de la Blache, discutindo o tema da fome com naturalistas como Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, se utilizando da riqueza semântica, poética e narrativa de romancistas como Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, travando duros debates com Gilberto Freyre e citando os importantes estudos sobre alimentação do médico Orlando Parahim, Josué de Castro elaborou uma profícua análise da fome no sertão. No entanto, foi muito além das causas ambientais e climáticas, algo impregnado na consciência nacional da época. Constatou que o problema da miséria e da fome na região era estrutural, explicado por questões históricas, fundiárias e políticas.

Ao analisar o Brasil, Castro fez duras críticas ao pensamento dominante daquele tempo, que colocava a industrialização como a única via para o desenvolvimento do país. Chamou atenção para que o governo investisse também na economia agrícola, por isso o “dilema” descrito no subtítulo da obra: “pão ou aço”, alimentação ou industrialização? A resolução, segundo ele, seria compatibilizar pão e aço segundo a imposição das circunstâncias sociais e da disponibilidade econômica existente. O principal caminho seria a instauração de uma ampla reforma agrária, sendo preciso superar o obstáculo jurídico da propriedade privada mediante “justo valor” a ser pago pelo Estado.

No decorrer destes 75 anos da 1ª edição de Geografia da Fome, o Brasil passou por transformações substanciais, resolveu o problema do abastecimento alimentar, aumentou e diversificou a produção agrícola, e de um modo geral sanou problemas mais específicos de carências alimentares, comuns nos anos 1940. Mas desde o início do 2º mandato de Dilma Roussef, momento do aprofundamento de uma agenda neoliberal, de ajuste fiscal e de seu impeachment em 2016, houve uma maior expansão das desigualdades sociais no país, resultado do baixo crescimento econômico, da redução drástica dos investimentos públicos, da flexibilização no mercado de trabalho, da turbulência política e da retração dos gastos com políticas sociais. 

Atualmente, em meio a mais grave pandemia em cem anos, a fome atingiu cerca de 19 milhões de brasileiros em 2020 de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), um documento de 66 páginas que atesta ainda que 116,8 milhões de pessoas no país convivem com algum tipo de insegurança alimentar em seu cotidiano.

O mais é revoltante é constatar que, a despeito das transferências de renda em 2020 e 2021, destinadas a famílias vulnerabilizadas, o governo federal não demonstra preocupação com a calamidade da fome em território nacional, visto que não há qualquer agenda política de estímulo a implantação de programas sociais para tratar o problema. Por outro lado, é possível observar uma postura governamental que contribui para os desmatamentos, a grilagem de terras e os garimpos ilegais na Amazônia, além do incentivo ao agronegócio, ao latifúndio e às monoculturas, ocasionando ameaças às comunidades tradicionais, suscetíveis à destruição de seus territórios e seus modos de vida pela sanha de megaprojetos mineiros, agropecuários e industriais.

Pelo exposto, é inadiável que se resgate e coloque em prática o legado de Josué de Castro. Sua Geografia da Fome nos mostra ainda hoje que os interesses mercantis de acumulação, materializados pela aliança entre elite nacional e grande capital financeiro, continuam sendo os principais responsáveis pela concentração de riqueza, pelo racismo ambiental e expropriação de camponeses, pela opressão às comunidades indígenas e quilombolas, extermínio de populações pretas nas cidades e pela destruição de biomas e ecossistemas no país. As consequências deste processo são o alastramento do desemprego, da miséria e da fome, ratificando o nosso persistente subdesenvolvimento, algo que só começará a ser superado, como o próprio Josué preconizou décadas atrás, com a definitiva emancipação alimentar do povo.

Artigo publicado em O Imparcial, dia 7 de junho de 2021

Uma resposta em ““Geografia da fome” 75 anos depois”

cadê a consciência de classe?

pois a pior fome é a da falta
de consciência dos de baixo
bucho cheio vidas apagadas
pão e circo da elite do atraso

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