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A queda para cima: Sérgio Moro e a nova face da tirania

Por Marco Rodrigues, escritor e filósofo

No diálogo Πολιτεία (Politéia), do filósofo grego Platão, mais conhecido como A República, um sofista (mestre na arte da persuasão), chamado Trasímaco, apresenta a seguinte tese: “o justo nada mais é senão a vantagem do mais forte”. Essa ideia poderia muito bem servir ao ex-juiz, e agora ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, que teve a imagem de “herói nacional ” construída com a ajuda de boa parte da mídia, embora se servindo à revelia de procedimentos ilegais e vazamentos, enquanto exercia o cargo de juiz federal em pleno apogeu da Operação Lava-Jato. Porém, a potência da mística entorno do combate à corrupção acabou por solapar e minimizar essas práticas sorrateiras, ao ponto de parecerem nem existir. Combatia-se a corrupção? Sem dúvida, como jamais havia se realizado antes, com ampla autonomia do Ministério Público e da Polícia Federal inclusive, mas na mesma medida em que também se cometia crimes e abusos contra o ordenamento legal.

Já estava esboçado, inequivocamente, um projeto de poder, cujas raízes já se estendiam às paragens da parcialidade ainda não muito nítidas. O verme da corrosão social vagarosamente roía as bordas da Constituição Federal de 1988. Cito aqui o livro A República não apenas por ser a justiça o tema central, além da dimensão política de seu debate. Essa obra na verdade permite compreender, quando lida cuidadosamente, a genealogia das possíveis aspirações tirânicas e suas causas, as quais não se realizam sem a imposição de uma fúria ornada de certa pseudomoral, cujo sentido precisa contagiar e inspirar a esperança e o anseio por mudança meio ao caos, generalizado pela ineficiência das instituições políticas em decadência. É na figura de um “salvador da pátria”, de um “messias”, que esse fenômeno se demonstra, na mesma medida que o autoritarismo avança sistematicamente.

Poderíamos supor, então, que se trataria de Jair Bolsonaro a consumação dessa tendência em vigor. Mas não, de forma alguma. Apresentar-lhes-ei uma outra hipótese. Antes, em estado de crisálida, uma mariposa hematófaga que crescia em Curitiba, as sombras do mito mequetrefe, rompe o invólucro e começa voar. O presidente da república Jair Bolsonaro não tem condições cognitivas mínimas para se tornar nem mesmo o maior dos estúpidos da história brasileira. Restar-lhe-á, em dado momento, apenas anedotas burlescas a seu respeito, ilustrativas de um tempo caricato ao delírio de teorias da conspiração e obscurantismo. Por outro lado, tem realizado, sem perceber, o trabalho sujo que servirá ao autêntico representante dos modos tirânicos hodiernos, deixando assim um larguíssimo campo aberto. As desavenças com governadores, até com aqueles que eram a ele simpáticos, como Ronaldo Caiado; as demissões por simples divergência e capricho, envolvendo o general Santos Cruz, Gustavo Bebianno, e principalmente a de Henrique Mandetta que, por sua vez, o incomodava pela popularidade atingida com mérito frente a pasta da saúde, expressa o orgulho característico da psicologia platônica do tirano. É por isso que Platão compreende que “o tirano terá que se livrar de todos”, é uma condição sine qua non, “se pretender governar, até que a sua volta não reste um único amigo ou inimigo de alguma dignidade”, pois nutre um egoísmo visceral por ser inteiramente dominado por seus apetites e frêmitos dos mais passionais – o que desencadeia a necessidade constante em ser o centro de todas as atenções. Todavia, isso constitui, inevitavelmente, a sua própria ruína, pois chegará um momento em que não será capaz de confiar nem mesmo em sua própria sombra.

Porém, estamos diante de um outro tipo de homem tirânico, que diferente do platônico não se deixa facilmente arrastar por seus ímpetos em histeria e chilique espontâneos. Pelo contrário, ele é frio, dissimulado. Olha de soslaio, sorri de canto de boca. Como um operador de telemarketing, fala quase sempre no mesmo tom, sem alterar drasticamente a voz, mesmo sob grande tensão. Não é porque não seja afetado pelos seus impulsos, mas porque os domina inteiramente, e por isso almeja realizá-los por completo no instante derradeiro. Não é uma disposição virtuosa, trata-se de uma disciplina dos vícios e iniquidades de um predador. Ao invés de inflamar-se por fora, como o tirano clássico, abrasa-se por dentro. Cirúrgico, como Hannibal Lecter, no clássico cinematográfico O Silêncio dos Inocentes, conhece os métodos mais eficazes no exercício da morte para não levantar tantas suspeitas. É por essa razão que suporta humilhações, é habilidoso em manter o foco. Cínico, sem utilizar de deboche, como na gíria ludovicense, “a cara nem treme”. É resiliente, de causar inveja ao melhor dos coachs; digo “melhor” apenas por cortesia. Não se importa de modo algum em perder a dignidade, em ser desautorizado, ultrajado, conquanto que isso garanta a saída oportuna no instante em que o seu adversário direto estiver em crise e enfraquecido pelas circunstâncias ou por sua própria inoperância. Arma em seu fracasso o próprio triunfo, fingindo ser a vítima, instaurando uma nova fase. Tem objetivos ao invés de sonhos, com ares megalomaníacos. Sendo assim considerado, o homem tirânico contemporâneo, que vos apresento, exerce o seu domínio, com efeito, através da indiferença atrativa de sua condição de existência, que serve de espelho ao ódio e ao moralismo exaltado das massas e dos homens médios que nele se reconhecem através de mecanismos de destruição que atuam como representações da eficácia.

Para conferir alguns exemplos, sem titubear Sérgio Moro outrora propôs o “excludente de ilicitude”, isto é, licença para matar, como uma das medidas do “pacote anticrime”. Sem qualquer constrangimento, foi contra o projeto de lei que visa punir abuso de autoridade, ao passo que se servira largamente, na condição de juiz, de medidas coercitivas e mandados de prisão mesmo sem necessidade. Não hesitou em condenar sem provas, e provavelmente por esse motivo foi contra a proposta de instauração do chamado “juiz de garantias”, o que poderia eventualmente inviabilizar a promoção de seu bel-prazer, a exemplo da possibilidade de indicar uma testemunha à acusação, como fizera, cujo processo ele mesmo julgaria.

Ora, levando em consideração tamanho grau de manipulação, premeditação e calculismo, em nome dos próprios interesses, seria quiçá possível e forçoso se concluir que se trata de um caso de psicopatia? Deixo isso a cargo de especialistas. Com requintes de crueldade, no ato do pronunciamento de sua demissão, não foi difícil acusar o presidente Jair Bolsonaro de crimes graves, dentre os quais se destacam improbidade administrativa, por tentar interferir no trabalho da Polícia Federal e crime de responsabilidade, ao impor que se destituísse do cargo o diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo, de modo a atender demandas pessoais, as quais pouco ainda se sabe. E, para coroar seu sadismo, fez questão de sugerir que tais eventos seriam até impensáveis em tempos dos governos petistas, os quais sempre foi oposição: “Imaginem se durante a própria Lava Jato, o ministro, o diretor-geral, a então presidente Dilma, o ex-presidente Lula ficassem ligando para o superintendente em Curitiba para colher informações sobre as investigações em andamento”. Quase como um lance de poker, arrogando para si uma ausência de autonomia na condução do ministério, afirmando não ter tido “carta branca”, reforça a imagem de autoritário do presidente da república e suaviza a sua própria, permitindo assim passar a impressão de que agora, além de “símbolo” do combate à corrupção, seria também o mais honrado paladino da liberdade. “Falei com o presidente que [a exoneração de Valeixo] seria uma intervenção política [na PF], e ele disse que ‘seria mesmo’”, diz ainda o ex-ministro, não tendo qualquer empatia ao chutar, com a ponto de seu caro sapato social, um cão que gradativamente agoniza, num gesto de regozijo e júbilo incapaz de arrependimento. Foi praticamente indiferente aos problemas decorrentes com a pandemia de covid-19, cuja medida utilizada não passou de silêncio.

Conduto, não poderia sair momentaneamente de cena sem conservar um traço distintivo do bolsonarismo à construção do morismo: a formação intelectual deficitária, ou simplesmente a burrice arrogante. Ao declarar que houvera solicitado uma pensão, caso algo a ele acontecesse, cuja proposta não está prevista em lei, deixa claro seu reles domínio do conhecimento jurídico, além de confessar sem querer um crime, previsto no seguinte mecanismo legal:

Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (Artigo 317 – código penal)

Destarte, duas facções certamente estarão em curso. O bolsonarismo deve sem dúvida se radicalizar ainda mais, com o estrebuchar do “gabinete do ódio”, o que nutrirá a possível ascensão do morismo sem precisar nem mesmo de propaganda. Como modelo de homem tirânico contemporâneo, é Sergio Moro, e não Bolsonaro, embora isso não retire esse último da condição de escória existencial, o verdadeiro expoente daquilo que se denomina, embora de modo insuficiente, de extrema-direita.

Por fim, caberá aos “cidadões de bem” decidir quem apoiar, cuja ignorância passa a vivenciar um dilema: qual desses dois criminosos é menos criminoso ao combater a corrupção e a ameaça comunista?

É difícil imaginar quando esse delírio irá se dissipar, trazendo de volta a lucidez indispensável que permita se pensar, com seriedade, a promoção da democracia. Reflexões são extremamente necessárias nesse momento, frente a possibilidades distópicas que tem avançado, que minam a liberdade e a ideia de cidadania. Como adverte Montesquieu, cujos conceitos inspiraram inclusive a nossa Constituição, “liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder”. Por isso, preservar instituições é imprescindível e, ao invés de buscar destruí-las ou fechá-las, por conta de falhas humanas, que sempre irão existir, o que se precisa é constantemente corrigi-las e aperfeiçoá-las, com alternância de poder e vigilância perene de suas práticas que a todos afeta. 

Sem inteligência, não há salvação…

Imagem destacada capturada aqui / Marcelo Camargo / Agência Brasil

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