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A RETÓRICA E O GOLPE

Eloy Melonio

Foi ou não foi um “golpe”? Essa pergunta já deu muita discussão, especialmente quando se fala do universo político-constitucional.

Felizmente o golpe de que trato aqui não tem nada a ver com a política. É coisa da vida comum mesmo. E, infelizmente, tem tudo a ver comigo.

Era uma bela manhã de domingo, com sol e vento típicos do mês de setembro. Um homem branco, de idade e estatura medianas, usando uniforme de uma empresa de refrigeração, parou sua moto na pracinha onde eu e o vigia da rua estávamos sentados. Pediu uma informação que não soubemos dar.

Da moto, falava ao telefone. Em três minutos, recebeu umas três ligações. Em todas, referia-se a ar-condicionado e geladeira, e demonstrava profundo conhecimento técnico.

Atento ao que dizia, perguntei-lhe se tinha cartão de visita, e se atendia fora do horário de trabalho. Não tinha cartão, mas me passou o número do seu celular.

A isca estava lançada. E o peixinho parecia disposto a mordê-la.

Falei de uma geladeira que me dava muita dor de cabeça. E perguntei-lhe se podia dar uma “olhadinha”, aproveitando que já estava ali. Hesitou, mas terminou atendendo ao meu pedido.

Em suas conversas, o assunto era a “conta de energia”, exageradamente alta, que os aparelhos de seus interlocutores estavam causando. E foi esse detalhe que me despertou o interesse. Ele enfatizava que a culpa não era da fornecedora de energia, mas dos técnicos que não faziam seu serviço direito.

E assim terminei apresentando-o à famigerada geladeira. Rapidamente examinou o motor e me mostrou alguns probleminhas. Com uma comunicação fácil, logo ganhou minha confiança. Permaneci ao seu lado o tempo todo, exceto quando me pediu uma palha de aço. Disse-lhe que ia ver na cozinha do quintal. Fui, e logo voltei com o produto de “mil e uma utilidades”. Compenetrado no que fazia, o rapaz cortava fios, trocava peças, e me explicava cada procedimento.

Terminado o serviço, perguntei-lhe quanto lhe devia, e paguei-o prontamente. Antes, porém, o bom rapaz me disse que se eu não tivesse o dinheiro, poderia pagá-lo depois.

Antes de sair, pediu-me para ligar a geladeira somente dali a 30 minutos. E que tivesse cuidado com choque elétrico. Agradeci-o, e ainda lhe dei uma gorjeta.

Passados uns dez minutos, minha esposa não conseguia encontrar seu celular recém-comprado para fazer uma ligação. Procuramos por toda a casa, e nada. Liguei para seu número, e só dava caixa postal. Liguei para o número do técnico, e ouvi a mensagem: “Não foi possível completar sua ligação…”.

Foi aí que a ficha caiu. Quem sabe o rapaz da geladeira?!

Voltemos ao início de nossa história. O suposto técnico era um cara atencioso, bom de papo, do tipo “gente boa”. Chegou a dizer que se fosse “coisa simples”, eu não precisava pagar nada. Enquanto executava o serviço, conversamos sobre amenidades e coisas sérias. Falamos de viagens, do nosso medo de viajar de avião, da Bahia (seu estado natal), de um treinamento que fez em Rosário, pois na época trabalhava para uma empresa da Argentina. Citou nomes de clientes importantes. Disse-me, com certa inveja no olhar, que eu parecia ser uma pessoa feliz. E quando soube da minha idade, desconfiou, pois me achava uns 15 anos mais novo.

Mesmo depois de confirmado o golpe, eu não queria acreditar. Não, não aquele rapaz! Qualquer outra pessoa, menos ele! Torcia para acharmos o celular e acabar com nossa desconfiança. E confirmei ali, para mim mesmo, o que venho ensinando a vida inteira: em seu sentido pejorativo, a “retórica” é uma arma perigosíssima.

Já ouvira histórias de golpes desse tipo contadas por amigos, e de muitas outras, mostradas na TV. Achava graça ou debochava dos “otários” que caíam nessas ações ardilosas.

Sem dúvida alguma fui vítima de um golpe espetacular, digno de uma série de TV (ou de uma crônica!). E como nunca antes na minha vida, senti-me, no dizer do nosso querido Tiririca, um tremendo “abestado”.

* Eloy Melonio é professor de inglês, escritor, poeta e compositor

8 respostas em “A RETÓRICA E O GOLPE”

A sua narativa é tão perfeita que tive a sensação de presenciar esse acontecimento. Já dizia minha mãe:
Não confie nem na roupa que você veste, porque pode ter uma aranha ou semtopeia para te picar.
Parabéns meu poeta, escritor, compositor e professor.
Um forte abraço amigo.

Muito boa cronica poeta! Leitura interessante, gostosa, que prende o leitor. Vc só cometeu um um pecado capital, quando, se afastou, pra pegar o infeliz do Bombril, que das mil e uma utiludades, nessa hora, só serviu ao malaco, pra capturar, o inocente celular, que ficou enfeitiçado com o bom papo do gatuno.; nem pra gritar , teve forças, e pedir socorro!
Foi embora, com o malandro.
Parece que TAMBÉM, caiu no conto do vigário!
Kkkkkk…..

Tentei parar de ler, depois antecipar o final, cheguei a entender que por acaso era um técnico especializado mesmo. Enfim, a crônica de tão bem escrita, nos prende e faz ler até os comentários.

Prezado amigo. As aparências enganam…
Embora não tenha sido informado na bela narrativa, creio que a geladeira foi danificada, pois ele não devia saber o que estava fazendo e pediu para só ligá-la após um tempo suficiente para ele escapar…

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